Alguém já disse que o futebol pertence às crianças. A frase traz consigo um dos mais belos enganos voluntários que se pode cometer. A indústria do esporte, cada vez mais parecida com todos os outros campos profissionais, afasta o jogo de quem, como os pequenos fãs, o vê com nobreza e lealdade. De fato, gostaríamos que o futebol fosse puro e merecesse a devoção pueril, mas sabemos que não é assim.
Este jogo é tão especial, porém, que nos autoriza a infantilidades em nome dos sentimentos que carregamos desde os primeiros contatos. Um fenômeno que não enxerga fronteiras e não tem obstáculos a seu potencial de contagio. Dois exemplos dessa realidade foram observados nos últimos dias na Europa, região do mundo onde o futebol é tratado da maneira mais séria e profissional (o que não significa, trolls, que não haja equívocos e defeitos, ok?).
O primeiro foi o anúncio de que Steven Gerrard deixará o Liverpool ao final da temporada em curso. A notícia foi recebida e repercutida na Inglaterra com um notável caráter de pesar, como se representasse uma tragédia. Análises da trajetória do meia nos campos foram escritas com referências quase póstumas, depoimentos foram colhidos como homenagens, perguntas foram formuladas com a sugestão de que o mundo não seria mais o mesmo. Em um dado momento, parecia que Gerrard havia morrido. Ou que sua carreira tinha se encerrado de forma repentina. Felizmente, ele apenas decidiu jogar em outro lugar.
Steven Gerrard é um excelente futebolista, de história rara e admirável. É uma das poucas pessoas que podem dizer que se apaixonaram por uma camisa, a vestiram com classe e orgulho, dedicaram-se a ela por longos anos e com ela foram felizes. Não se discute sua importância ou seu lugar no altar emocional dos torcedores do Liverpool. A questão é a necessidade que o futebol nos impõe de tratar certas ocasiões como uma espécie de eulógia. Gerrard tomou uma decisão profissional, certamente difícil, mas baseada em sua idade (34 anos) e nas condições atuais de suas habilidades como jogador. Seu caminho continuará e é possível até que ele volte a jogar no clube pelo qual torce.
O outro exemplo foi a volta de Fernando Torres ao Atlético de Madrid, oito anos depois de deixar o clube onde nasceu para o futebol, pelo qual disputou mais partidas e marcou mais gols. A torcida do Atlético o recepcionou como o filho que ele verdadeiramente é, com cerca de 45 mil pessoas presentes, ontem, ao estádio Vicente Calderón. Um ambiente semelhante ao que se vê na chegada de um astro no auge da forma, quando na verdade quem estava ali era a lembrança de um jogador que sumiu.
Faz seis anos que Torres não é capaz de jogar um futebol que se aproxime do que fez dele um ídolo em Madri. Seu retorno tem todas as características das oportunidades que se apresentam a um esportista em declínio, acompanhadas do lembrete, em letras miúdas, de que não haverá outra. É uma contratação sentimental, cujo sucesso está amparado na possibilidade – igualmente sentimental – de um ressurgimento estimulado pela geografia.
Em ambos os casos, a objetividade ficou à margem. O futebol de Gerrard não morreu e o de Torres não ressuscitará. Mas o jogo nos compele a chorar e sorrir, a vivenciar luto e euforia imaginários, como fazem as crianças. Talvez o futebol realmente pertença a elas.
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