FUTEBOL E TRAIÇÃO

Quando, em 2002, o Wimbledon renegou seu passado para virar MK Dons, ninguém imaginaria que dez anos depois ele o reencontraria. No domingo, 2 de dezembro, o time criado pelos fãs abandonados enfrenta pela primeira vez o clube que se deslocou 90 km rumo ao norte para ter um estádio em que pudesse mandar seus jogos.

A história renderia um filme. O Wimbledon passou 89 anos nas ligas amadoras inglesas. Conseguiu o direito de disputar seu primeiro campeonato profissional em 1977. Nove anos depois estava na primeira divisão inglesa. Mas foram dois acontecimentos ligados à Copa da Inglaterra que mudaram a história do pequeno clube de bairro da zona sul de Londres.
A primeira delas é a lendária geração “Crazy Gang”, um time de brutamontes que conquistou em 1988 a FA Cup diante do Liverpool, o papão de títulos da época. Foi a segunda equipe na história a conquistar a versão amadora e também a profissional. 
Há uma penca de livros sobre essa era. O principal deles é The Crazy Gang: The Inside Story of Vinnie, Harry, Fash and Wimbledon FC, de Matt Allen. Mas vou me ater ao ultimo, lançado neste semestre na Inglaterra: Underdog, de Tim Quelch.
Quelch estabelece um definitivo ponto de combustão futebol/pop desde a década de 1950. O livro – não apenas sobre o Wimbledon, mas sobre todos os vira-latas que fizeram história no futebol inglês – classifica seus capítulos por músicas da época.
A do Wimbledon se encaixa em Rise, canção do PIL de 1986, das linhas “eu posso estar certo, eu posso estar errado”. Nada melhor para definir aquele time. Eles eram temidos por jogarem feio. Tinham no elenco um mau caráter, Vinnie Jones. Seu estádio era o acanhado Plough Lane, para 7000 pessoas. Podia estar tudo errado. Podia estar tudo certo. Quem define isso?
Foi na campanha da FA Cup de 1988 que Vinnie protagonizou a inesquecível cena em que aperta as partes baixas de um jovem Paul Gascoigne, então no Newcastle. Vinnie, que depois viraria um ator requisitado (esteve em Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Penalidade Máxima), foi o grande personagem. No jogo decisivo contra o Liverpool, não poupou cuspes e disse: “Nada dessa história de cumprimentar. Vamos passar direto”. O time fez um pacto: nada de se barbear ou de tomar banho 24 horas antes da final. O Wimbledon venceu por 1 x 0.
Um ano depois, o mesmo Liverpool enfrentou o Nottingham Forest em Sheffield pela semifinal da FA Cup. Uma confusão nas arquibancadas fez com que 95 pessoas morressem esmagadas. Em 1990, Lorde Taylor de Gosforth elaborou o relatório que ordenou que todos os estádios das duas principais divisões inglesas tivessem espaços apenas para torcedores sentados.
Foi o começo do fim do Wimbledon. Era impossível adaptar o pequeno Plough Lane à nova regra. Assim, o clube passou a mandar seus jogos no estádio do Crystal Palace, o Selhurst Park, também no sul de Londres. Foi lá que registrou o pior público da história da liga inglesa: 3039 pagantes para assistir a um Wimbledon x Everton, já pela Premier League em 1993.
A proposta para mudar de cidade foi aceita em 2002 pelos proprietários do clube. Milton Keynes tinha um bom estádio, mas não tinha time. Os torcedores protestaram. Em vão. Como vingança, fundaram o próprio clube, o AFC Wimbledon. A federação inglesa aceitou a mudança de cidade em 2004, desde que um novo clube fosse criado esquecendo o passado.
Desde então, o MK Dons é chamado de “franquia” pelos admiradores do velho Wimbledon. O clube criado pelos torcedores ascendeu meteoricamente para a Football League. Chegou na temporada 2010/11 à quarta divisão, a primeira etapa profissional do futebol inglês. Está a apenas um degrau do clube que renegou a sua história em troca de um estádio.