O TEMPO QUE O TOSTÃO VALIA MAIS DO QUE PELÉ...

Para mim não havia dúvida, era fato incontestável: Tostão era melhor do que Pelé. Até que Pelé tinha seu valor: fazia jogadas insinuantes, penetrava com facilidade nas defesas e perto da área ou dentro dela era quase infalível. Mas Tostão era maior do que ele, pelo menos no meu time de futebol de botão. Pelé era uma "vidrilha", isto é, uma tampa transparente de relógio de pulso transformada em goleador. Por ser transparente, ficava bonito ver a cabecinha de Pelé recortada do jornal e devidamente colada no "meu" jogador. Tostão, por sua vez, era um botão de galalite brilhante, amarelo. À época eu nem pensava como se fazia o galalite, mas pesquisando descobri que o precioso material é um derivado, vejam só, do leite. São necessários de 15 a 85 galões de leite para fazer um miserável quilo de galalite. É claro que isso me faz lembrar a antológica frase de Gentil Cardoso tentando convencer seus jogadores a praticarem o jogo rasteiro: “A bola é de couro, o couro vem da vaca, a vaca gosta de grama, então joga rasteiro, meu filho”. Com o devido respeito, o galalite vem do leite, o leite vem da vaca... e não há jogo mais "rasteiro" do que o futebol de botão: a bola só alça voo, normalmente, nos chutes, de resto os passes são colados à "grama". O que eu já sabia, entretanto, é que os meus sonhos eram feitos daquele material. Aos sete anos eu admitia ser um perna-de-pau inapelável. Para compensar tornei-me um jogador de futebol de botão. Com aquele time eu podia entrar dentro de campo, passar, driblar, chutar e, sobretudo, marcar gols, muitos gols. Por isso, para mim, Tostão era maior do que Pelé. Tostão era largo e alto e a sua especialidade, que o tornava temível entre os meus adversários, era chutar muito bem logo após a linha do meio de campo. Era desesperador e humilhante para os outros meninos sofrerem gols desse jeito. Imitando a vida real mais ainda, um amigo até me fez uma proposta por Tostão. O valor que oferecia era dez vezes mais do que a quantia que eu desembolsara na papelaria. De nada adiantou eu tentar lhe dizer (mesmo que eu também não acreditasse nisso), que Tostão era apenas um botão e que ele poderia comprar outro igual. Claro que sabíamos que os botões eram fabricados industrialmente, mas nenhum botão era igual ao outro. Disse ao meu amigo que não levaria vantagem sobre ele vendendo o Tostão por tanto dinheiro. Mas a verdade é que naquela época eu não venderia o "meu Tostão" por dinheiro algum.
O sobrado de classe média onde eu morava era palco de um drama cotidiano. Na nossa infância às ruas de Higienópolis (bairro do Rio de Janeiro) já não permitiam a sua transformação em campo de futebol improvisado. No sobrado não tinha playground, mas em frente havia um portão que dava a um campinho. É claro que nós queríamos utilizá-lo como palco de épicas peladas. E utilizávamos enquanto os maiores não jogavam. E, quando os maiores chegavam, o que nos restava era o futebol de botão. Se não podíamos jogar com os pés, jogávamos com as mãos e a imaginação. Ele tinha a capacidade de nos transportar para muito além de Higienópolis. Fazíamos copas do mundo, cada um representando uma ou mais seleções, campeonatos cariocas, brasileiros e até campeonato inglês nós fizemos. Lembro um campeonato jogado em três mesas, a maior era o Maracanã, a de tamanho médio era São Januário e a menor representava o estádio de um time pequeno.
À época, nós nem queríamos saber de onde tinha vindo o futebol de botão. Nem podíamos imaginar que ele tivesse sido criado na década de 30 e que em 1977 ele viesse a ser reconhecido oficialmente pelo Conselho Nacional de Desportos (CND) como uma modalidade esportiva. Mas sabíamos que a geração anterior à nossa jogara com botões diferentes, improvisados, muitos feitos de casca de coco. Na verdade, em cada lugar se jogava de um jeito. No nosso pequeno mundo da Rua Pacheco Jordão, a bola era quadrada. Isso mesmo: jogávamos com um dadinho que comprávamos na papelaria. Em outros lugares usavam-se discos de plástico ou bolinhas de feltro. Tínhamos a liberdade de criar nossas próprias regras: tempo de jogo, fórmulas de campeonato (pontos corridos, eliminatórias etc.), métodos de desempate (prorrogação, disputa de pênaltis). Nossos atletas eram mimados, cuidadosamente guardados em caixas de papelão ou latas de Neston ou Nescau, limpos com flanelas e tratados com carinho. Nossos "gramados" eram cobertos com uma fina camada de talco ou limpos com lustra-móveis para os botões deslizarem melhor. Éramos técnicos, jogadores, cartolas e juízes, tudo ao mesmo tempo.
Depois meu filho nasceu, faço questão que ele tenha a oportunidade de jogar futebol de verdade. Mas não deixo de lhe ensinar a jogar futebol de botão. Na verdade, eu me tornei um "profissional" bem antes dele nascer e meu sonho é nós dois jogarmos juntos um campeonato de futebol de mesa com a camisa do mesmo clube...
Sim, o meu futebol de botão é agora pomposamente chamado de futebol de mesa por ter regras oficiais, campeonato, federação e o escambau. É completamente diferente. A mesa é enorme, tem quase dois metros de comprimento (c. 1,85 m) por um metro e vinte centímetros de largura. A regra mais difundida, pela qual eu jogo, permite no máximo nove toques no Dadinho de acrílico, quadradíssimo, sendo que cada botão só pode dar três toques na bola. Os botões são dediversos tipos de material e são bem maiores do que eram meus craques de infância. E não são feitos mais, em sua maioria de galalite e sim de acrílico, paladon ou madre-pérola.
Os atletas do futebol de mesa treinam duas vezes por semana pelo menos. Cada clube tem o seu CT (Centro de Treinamento) onde os mais aplicados passam horas e horas jogando uns contra os outros de olho nas competições. Sem falar nos fominhas que compram uma mesa e ficam em casa treinando chutes feito Zico fazia. Para participar dos campeonatos existem até competições seletivas, uma espécie de segunda divisão, onde eu tive que jogar até conseguir "subir" para a primeirona.
Quando eu comecei a competir, tive primeiramente que comprar um time. Comprei um time amarelo. Não colei as "cabecinhas" dos jogadores, mas coloquei adesivos com escudo, nomes e números, homenagendo o bairro onde moro e meus vizinhos conhecidos. Meu vizinho e amigo Beto começou a jogar mais do que todo mundo. Sim, porque embora seja você a mover a palheta, a crença mágica é que o botão é que está jogando. Há botões que jogam muito e outros que são irremediáveis pernas-de-pau. Ou estão apenas atravessando uma má fase...
Há campeonatos cariocas, brasileiro e, pasmém, em junho de 2012, ocorreu em Copacabana, no Rio de Janeiro, a II Copa do Mundo de Futebol de Mesa da modalidade doze toques. O Brasil sagrou-se bicampeão mundial, nada mais justo. Afinal, se o football association foi criado na Inglaterra, este futebol movido a sonho só podia ter sido inventado em terras tupiniquins.
 
(Em 15/05/2013)