Nasci numa grande floresta fui crescendo fiquei forte. Testemunhei dias lindos ensolarados, mas também grandes temporais que sacudiam meus galhos e assustavam os pássaros que se abrigavam em meus ramos. Certo dia ouvi um barulho diferente. Não era um ruído da natureza. De repente uma vizinha tombou ao meu lado atingindo grande parte dos meus galhos, deixando meus inquilinos em desespero. Antes que pudesse entender o que ocorria, senti no meu tronco um vai-e-vem cortando minhas fibras. Em poucos segundos fui ao chão inanimada.
Deixei de ser um ser vivo, porém continuei com a energia de minhas células, pois como sabem mesmo os seres inanimados, embora muitos duvidem, possuem átomos com seus elétrons e núcleos comuns a tudo que existe no universo, inclusive os seres vivos. Assim ensinava um Pajé a um bando de curumins que se reuniam em minha volta. Logicamente não usava essa terminologia, isso eu aprendi mais tarde. Depois eu conto.
Fiquei ali caída durante alguns dias, esperando seguir o curso da natureza, pois em torno de mim muitos seres, de diversas espécies, se preparavam para seguir seu ciclo de vida e garantir a sobrevivência de outras espécies.
De repente senti que me arrastavam por uma trilha que terminava num penhasco e fui atirada num grande rio. Comecei a flutuar e fui levada pela correnteza, sem ter a mínima idéia do que estava acontecendo.
Mais adiante, recolheram-me do rio, me colocaram, junto com outras companheiras, sobre uma prancha cheia de rodas. Viajamos por muitas estradas até chegar numa grande cidade, muito longe de onde nasci. Lá fui escolhida por uns homens que me fatiaram em diversas tabuas. Fui enviada para um local onde recortaram as minhas fatias em pequenas peças e as juntaram novamente sob a forma de vários objetos que formavam um conjunto. Fui transformada numa linda mesa e recebi como companheiras seis cadeiras além de um companheiro conhecido como bufê. Ficamos lindos, verdadeiras obras de arte, com uma cobertura que nos deu um extraordinário brilho.
Fomos colocados num grande salão junto com outros conjuntos também de madeira de diversas espécies e origens. Todos os dias circulavam ao meu redor várias pessoas que me elogiavam me achavam bonita, mas por qualquer motivo não me levavam.
Apareceu, então, um casal que gostou muito de mim. Minha memória celular entrou energeticamente em contato com as deles e descobri que pretendiam substituir sua sala de jantar. Descobri, ainda, que eram pessoas que cuidavam bem de nós e davam um destino condigno aquelas que substituíam. Queriam modernizar a sua casa e iriam mandar os móveis antigos para o sítio deles.
Tudo que eu queria era ser escolhida por eles, mas parecia que o homem estava mais interessado num bar. A mulher é que insistia em me levar. Vocês não são capazes de avaliar a força de uma energia compartilhada ao nível celular. Minha energia interagiu com a dela e ela convenceu o homem a me comprar. Aceitou até levar junto o tal bar. E lá foi o conjunto para a casa deles.
No meu novo ambiente descobri que eu era de grande utilidade, fui considerada fundamental para manter a união familiar. Às pessoas que tentavam convencê-la que não se usava mais mesa ela insistia que jamais abriria mão de uma. Fiz ou não a escolha certa?
Os anos foram passando. Ao meu redor sentaram-se muitas pessoas, crianças, moços e velhos. Uns cresceram e por diversos motivos foram embora, mas voltavam sempre e até brigavam pelos lugares que antes ocupavam, alegando direito adquirido. Outros se foram e não os vi mais.
Inúmeras vezes surgiam “pessoinhas” que se agarravam aos meus pés para se equilibrarem, outras batiam com a cabeça e ficavam zangadas como se fosse minha culpa. Até o cachorrinho da casa ficava alerta para as migalhas que eventualmente caiam no chão e sempre levava bronca por isso.
Muitas festas natalinas e de fim de ano ocorreram a minha volta. Eu era a peça principal, como sempre desejou a minha dona. Era enfeitada, colocavam sobre mim as mais apetitosas iguarias. Tentavam fazer fervorosamente orações, mas mal conseguiam terminá-las. As gargalhadas e brincadeiras atrapalhavam. Mas tudo era alegria e sempre terminava tudo bem.
Vivi dias de glória, mas também presenciei algumas lágrimas em momentos tristes. Tudo se passava ao meu redor. Fui o centro dos acontecimentos, pois ali se sentavam para tomar grandes decisões. Comprovando tudo isso, foi sobre minha cabeceira que colocaram o grande quadro de Cristo presidindo toda a casa.
Um dia transformaram a sala de estar. Modernizaram o ambiente. Muitos implicaram comigo. Diziam que os moveis não combinavam, que a minha cor era muito escura, que ocupava muito espaço e era muito sóbria. Mas, meus donos resistiam. Aí a senhora começou a ceder. Interessou-se por novo conjunto de móveis.
Pesquisou, pesquisou e resolveu trocar, porém foi a vez do senhor resistir. Ele gostava muito do conjunto. Alegava que não se fabricava mais peças com madeira tão nobre. No fundo ele se preocupava com o meu destino. Queria alguém que nos valorizasse. Por isso a compra era sempre postergada.
Finalmente, o casal resolveu que não me venderia. Arranjaria um lugar condigno para mim. Porém, meu tamanho dificultava meu destino e de meus companheiros. Pensaram em alguém, mas achavam sua sala muito pequena e com certeza não aceitaria.
Minha inteligência celular captou a mensagem e resolveu intervir: “Vou fazer esse alguém me escolher”.
Um dia ficou diante de mim a pessoa escolhida por eles. Minha energia entrou em contato com a dela. Quando a conversa girou sobre o que fazer, com móveis tão bons, num impulso que ela mesma não deve ter entendido, falou: “dá pra mim”. Era tudo que o casal queria ouvir. Ambos achavam que o perfil dela, na vida familiar, era o indicado para manter a tradição. O dono ficou tão contente que deu luz verde para a compra da nova sala de jantar e antes que a pretendente se arrependesse, resolveu nos levar logo para a casa dela, mesmo antes da chegada da sala nova.
A minha despedida foi emocionante – se é que células – além de inteligentes também se emocionam. Cada dono, sem que o outro soubesse, fez a sua despedida. Agradecendo os bons momentos que viveram ao meu redor. mais tarde, conversando entre eles riram muito ao saber da despedida individual e que ambos tinham o mesmo sentimento a meu respeito. Tive nova despedida agora coletiva. Não cheguei a conhecer a minha substituta, mas sei que ela, embora de madeira não tão nobre como eu, ficou com certeza mais harmonizada no ambiente.
Na nova casa fui colocada na mesma posição que tinha na casa anterior e meu companheiro, o bufê, também. Por falar nisso cheguei a temer uma separação dele, porém a minha nova dona lhe arranjou um lugar. Eu é que tive de me virar para convencer as células dela de que caberíamos na sala. Ele fica mudo e não participa muito da vida familiar, serve apenas como coadjuvante. Cabe-lhe guardar as coisas que só ganham vida ao receber os quitutes, porém é em cima de mim que eles são colocados para serem saboreados. É lógico que ele é muito útil, porém não gera sentimentos de afeição como eu, onde todos se concentram. Mesmo quando a refeição é a americana, alguns, contrariando a anfitriã, insistem em sentar a minha volta.
Na parede, sobre a minha cabeceira um Cristo, presidindo a casa, é idêntico ao da casa antiga.
Minha estreia na nova família não podia ser melhor. Foram preparados pratos especiais e todos se sentaram em torno de mim. Não foi feita apenas uma refeição. Houve todo um ritual. A alegria era geral. Um velho conhecido meu (aquele dos cafés da manhã quando trazia vários tipos de pão e doces para partilhar com os velhinhos), resolveu encenar uma brincadeira, mas que no fundo era uma homenagem aos meus antigos donos. Tomou as rédeas da solenidade, resolveu distribuir as pessoas nas mesmas posições em que sentava a minha antiga família (opa! Já sou da família?) e assumiu o lugar do meu antigo dono, agindo como se fosse ele, imitando seus trejeitos, atitudes, broncas no cachorro etc. Foi hilário. Descontraiu o ambiente e todos riram muito.
Em determinado momento alguém disse que para ficar igual ao ambiente antigo só faltava o São Francisco que ficava à direita da minha cabeceira. Ele, então, postou-se na mesma posição da escultura. Isto porque as pessoas da família sempre o achavam muito parecido com o santo, devido a sua figura longilínea, sua calvície e barba idênticas. Aqui entre nós: parece ter sido ele a inspiração do artista ao esculpi-lo.
Sem dúvida, escolhi a família certa. Estou contente porque o pretendente a meu dono gostou muito de mim e disse até que me levaria para uma nova casa que eles viessem a montar. Sei que é sincero porque é ele que prepara as iguarias com muito carinho e se orgulha quando recebe os merecidos elogios. Grande “chef” não dispensa uma mesa, pois sabe que não é só o sabor e a beleza do prato que conta, mas precisa ser bem arrumado e emoldurado numa mesa a altura da sua arte. (Modéstia a parte).
Na semana seguinte recebi a visita dos meus antigos donos, sei que ficaram orgulhosos do meu novo “status”. Senti emoção neles e a satisfação dos meus novos donos em recebê-los e em homenageá-los com um saboroso frango a Kiev, com creme de milho e uma sobremesa, não menos nobre.
No meu novo ambiente descobri que eu era de grande utilidade, fui considerada fundamental para manter a união familiar. Às pessoas que tentavam convencê-la que não se usava mais mesa ela insistia que jamais abriria mão de uma. Fiz ou não a escolha certa?
Logo pensei: preciso agradar muito essa jovenzinha para ver se me perpetuo nessa nova família.
Outra “membra” da família também ficou muito contente comigo. Como ela escreve e lê muito, visualizou um grande espaço para espalhar seus livros, blocos e o laptop. Para quem trabalha com pesquisa nada mais adequada do que uma mesa grande para se espalhar. Preciso tratar ela bem, interagindo com a sua memória celular porque ela é uma candidata em potencial para no futuro ficar comigo, caso a minha dona atual mude de ideia.
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